literatura: a visão de vários mundos
O sebastianismo foi uma crença desenvolvida por um movimento social místico-secular surgido em Portugal na metade do século XII, através do desaparecimento do rei D. Sebastião no conflito de Alcácer-Quiber (1578) para libertar os lusos do domínio espanhol. Devido à ausência de herdeiros, assume o trono de Portugal um rei espanhol chamado Filipe II. Esse movimento é basicamente formado pelo messianismo, ou seja, devido à situação política a qual se encontrava Portugal (e ainda mais sendo controlado por um espanhol) e entre outros fatores. O povo português ainda acreditava que o seu país seria salvo de maneira miraculosa por um morto ilustre (D. Sebastião), pois as pessoas que faziam parte desse movimento social religioso esperavam pelo messias-português. Relata a lenda que o D. Sebastião continuava vivo, mas só apareceria na hora certa para tomar o trono e expulsar os estrangeiros.
É nesse contexto que podemos identificar na obra de Almeida Garrett em sua peça intitulada Frei Luiz de Sousa a presença marcante e explicita do movimento social (sebastianismo) a qual renasce em um momento crítico referente à nacionalidade, servindo assim de fonte inspiradora para Garrett na criação da peça citada acima. Nesse sentido o autor como também outros cultivaram o sebastianismo em suas obras literárias.
A peça é criada partindo da trágica historia entre Manuel de Sousa Coutinho e Madalena Vilhena. Madalena era casada com D. João de Portugal a qual foi rotulado como morto durante a Batalha de Alcácer-Quiber no país africano. Passando um bom tempo, Madalena casa-se com Manuel Coutinho.Depois de ter passado muitos anos o seu marido volta como romeiro e apresenta-se a ela. Após a descoberta, Madalena e Manuel angustiam-se, pois sabem que estão desonrados e são pecadores. Portanto, decidem ingressar na religião. Ele torna-se assim Frei Luiz de Sousa. O trecho a seguir mostra a descoberta da verdade:
CENA XIV
MADALENA, JORGE, ROMEIRO
JORGE
— Sois português?
ROMEIRO
— Como os melhores, espero em Deus.
JORGE
— E vindes?
ROMEIRO
— Do Santo Sepulcro de Jesus Cristo.
JORGE
— [5] E visitastes todos os Santo Lugares?
ROMEIRO
— Não os visitei; morei lá vinte anos cumpridos.
MADALENA
— Santa vida levastes, bom romeiro.
ROMEIRO
— Oxalá! Padeci muita fome, e não a sofri com paciência; deram-me muitos tratos, e nem sempre os levei com os olhos naquele que ali tinha padecido tanto por mim… Queria rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali se obrou… e as paixões mundanas, e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne travavam-me do coração e do espírito, que os não deixavam estar com Deus, nem naquela terra que é toda sua. Oh! eu não merecia estar onde estive: bem vedes que não soube morrer lá.
JORGE
— Pois bem: Deus quis trazer-vos a terra de vossos pais; e quando for sua vontade, ireis morrer sossegado nos braços de vossos filhos.
ROMEIRO
— [10] Eu não tenho filhos, padre.
JORGE
— No seio de vossa família…
ROMEIRO
— A minha família… Já não tenho família.
MADALENA
— Sempre há parentes, amigos…
ROMEIRO
— Parentes!… Os mais chegados, os que eu me importava
achar… contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com
ela; hão-de jurar que me não conhecem.
MADALENA
— [15] Haverá tão má gente… e tão vil, que tal faça.
ROMEIRO
— Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder!
MADALENA
— Não façais juízos temerários, bom romeiro.
ROMEIRO
— Não faço. De parentes, já sei mais do que queria. Amigos,
tenho um; com esse conto.
JORGE
— Já não sois tão infeliz.
MADALENA
— E o que eu puder fazer-vos, todo o amparo e agasalho que puder dar-vos, contai comigo, bom velho, e com meu marido, que há-de folgar de vos proteger…
ROMEIRO
— Eu já vos pedi alguma coisa, senhora?
MADALENA
— Pois perdoai, se vos ofendi, amigo.
ROMEIRO
— Não há ofensa verdadeira senão as que se fazem a Deus.
Pedi-lhe vós perdão a Ele, que vos não faltara de quê.
MADALENA
— Não, irmão, não, decerto. E Ele terá compaixão de mim.
ROMEIRO
— [15] Terá…
JORGE (cortando a conversação)
— Bom velho, dissestes trazer um recado a esta dama: dai-lho já, que havereis mister de ir descansar…
ROMEIRO (sorrindo amargamente)
— Quereis lembrar-me que estou abusando da paciência com que me têm ouvido? Fizestes bem, padre: eu ia-me esquecendo… talvez me esquecesse de todo da mensagem a que vim… Estou tão velho e mudado do que fui!
MADALENA
— Deixai, deixai, não importa, eu folgo de vos ouvir: dir-me-eis vosso recado quando quiserdes… logo, amanhã… ROMEIRO
— Hoje há-de ser. Há três dias que não durmo nem descanso nem pousei esta cabeça nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar aqui hoje, para vos dar meu recado… e morrer depois… ainda que morresse depois; porque jurei… faz hoje um ano… quando me libertaram, dei juramento sobre a pedra santa do Sepulcro de Cristo…
MADALENA
— [30] Pois éreis cativo em Jerusalém?
ROMEIRO
— Era; não vos disse que vivi lá vinte anos?
MADALENA
— Sim, mas…
ROMEIRO
— Mas o juramento que dei foi que, antes de um ano cumprido, estaria diante de vós, e vos daria da parte de quem me mandou…
MADALENA (aterrada)
— E quem vos mandou, homem?
ROMEIRO
— [35] Um homem foi, e um honrado homem… a quem unicamente devi a liberdade… a ninguém mais. Jurei fazer-lhe a vontade, e vim.
MADALENA
— Como se chama?
ROMEIRO
— O seu nome, nem o da sua gente nunca o disse a ninguém no
cativeiro.
MADALENA
— Mas, enfim, dizei vós…
ROMEIRO
— As suas palavras trago-as escritas no coração com as lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que me correram por estas faces. Ninguém o consolava senão eu… e Deus! Vede se me esqueceriam as suas palavras.
JORGE
— [40] Homem, acabai!
ROMEIRO
— Agora acabo; sofrei, que ele também sofreu muito. Aqui estão as suas palavras: “Ide a D. Madalena de Vilhena, e dizei-lhe que um homem que muito bem lhe quis… aqui está vivo… por seu mal… e daqui não pode sair nem mandar-lhe novas suas, de há vinte anos que o trouxeram cativo”.
MADALENA (na maior ansiedade)
— Deus tenha misericórdia de mim! E esse homem, esse homem… Jesus! esse homem era… esse homem tinha sido… levaram-no aí de donde?… de África?
ROMEIRO
— Levaram.
MADALENA
— Cativo?
ROMEIRO
— [45] Sim.
MADALENA
— Português!… cativo da batalha de?…
ROMEIRO
— De Alcácer-Quibir.
MADALENA (espavorida)
— Meu Deus, meu Deus! Que se não abre a terra debaixo de meus pés… Que não caem estas paredes, que me não sepultam já aqui?…
JORGE
— Calai-vos, D. Madalena! A misericórdia de Deus é infinita. Esperai. Eu duvido, eu não creio… estas não são cousas para se crerem de leve. (Reflecte, e logo como por uma idéia que lhe acudiu de repente.) Oh ! inspiração divina… (chegando ao romeiro) . Conheceis bem esse homem, romeiro, não é assim?
ROMEIRO
— [50] Como a mim mesmo.
JORGE
— Se o víreis… ainda que fora noutros trajos… com menos
anos, pintado, digamos, conhecê-lo-eis?
ROMEIRO
— Como se me visse a mim mesmo num espelho.
JORGE
— Procurai nesses retratos, e dizei-me se algum deles pode ser.
ROMEIRO (sem procurar, e apontando logo para o retrato de D. João)
— É aquele.
MADALENA (com um grito espantoso)
— Minha filha, minha filha, minha filha!… (Em tom cavo e profundo.) Estou… estás… perdidas, desonradas… infames! (Com outro grito do coração.) Oh! minha filha, minha filha!… (Foge espavorida e neste gritar.)
CENA XV
JORGE e o ROMEIRO, que seguiu MADALENA com os olhos, e está alçado no meio da casa, com aspecto severo e tremendo
JORGE
— Romeiro, romeiro, quem és tu?
ROMEIRO (apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal)
— Ninguém! (Frei Jorge cai prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna. O pano desce lentamente.)
Quando observamos essa parte percebemos a dramaticidade do episódio, porque a princípio Frei Jorge e Madalena não sabem que diante deles está D. João. No desenrolar da conversa o romeiro fornece vários indícios para descobrirem a sua verdadeira identidade. Mas é apenas no final que Madalena e Frei Jorge descobrem o mistério do tal romeiro.
Referencias:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sebastianismo
https://www.citi.pt/cultura/historia/personalidades/d_sebastiao/garrett.html
https://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/freiluisdesouza